Anônimos

Rompendo sua mente de mais uma viagem ao inconsciente despertou. Ao desconectar a pálpebra inferior da superior fez careta. Olhou no relógio de pulso com tela trincada que ficava sobre seu criado mudo, parcelado em trinta e seis vezes sem juros, era cinco e meia da manhã. Hora de levantar, afinal a rotina burguesa não admite falhas e exige perfeição digna de maquinário pesado. Sentou-se na beira da cama, bocejando uma, duas, três vezes. A tentação era grande: uma cama de tubos, com um calço de madeira em um dos pés. Colchão remendado, manta que não cobria toda a extensão corpórea de seu portador. E confesso-lhe, aquilo tudo era como oásis no deserto para quem não estava acostumado nem com um teto (mesmo que
de latão), sob sua cabeça.
Levantou tropeçando nos resquícios da preguiça que ainda lhe envenenavam. Deu um tapa rude no rosto curtido pelo sol. Resmungou algo que não entendi muito bem, algo que calhava como "Pobre não tem preguiça, nem fome, nem sono". Lavou as mãos numa bacia de ferro, descascada, reduzida à tralha por algum rico que a descartou, elevada a pia por ele, que a achou. Passou as mãos grossas em sua face, rompendo de vez com a revolta matutina que todos os dias o impedia de pensar "hoje vai ser diferente". Trocou de roupa. Não tomou banho, afinal, água encanada por ali era lenda urbana. Comeu um pedaço de pão velho que descansava sobre a mesinha de madeira de seu imóvel cúbico. Engoliu seco. A próxima refeição seria apenas após as duas horas da tarde, se alguma alma generosa compadecida de um pobre coitado lhe cedesse um prato de comida. Pegou a bicicleta, que demorou um ano pra comprar, coisa simples, pneus que juravam ter sido careca a vida toda. Saiu de sua mansão empurrando seu meio eficiente de locomoção. Fechou a mansão. Olhou ao redor, uma náusea fez com que seu estômago fingisse pesar uns dois quilos. O cheiro de lixo era forte por ali.
Montou no veículo de tração nas... duas rodas e pedalou. Pedalou por vinte quilômetros até o centro da cidade. Chegou no trabalho já sob o efeito do pouco açúcar circulando no sangue. Guardou a bicicleta no canteiro de obras. "Bom dia zé". "Bom dia zé". "Bom dia zé". Por ali todos eram zé, condenados à uma vida inteira de anonimato perante o resto da sociedade que diz ser superior, baseada em diplomas, diplomas estes transformados em sonho de consumo almejado pelo padeiro, pelo pedreiro e pela balconista da mercaria da esquina. Pobrezinhos, mais uma vez foram induzidos pelo capitalismo, que até isso transformou em comércio.
Milhões de esperançosos "zés" condenados à miséria da ausência de berço próspero, curso superior, casa de alvenaria... Reduzidos até no nome. Anônimos.

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Não há sentido em decifrar o que há dentro de cada um. Cada cenário diz respeito apenas ao ator que o utiliza como meio de brilhar, imaginar, como ferramenta para existir dento de si.

Aline Ribeiro Cunha.

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"O coração da mulher é assim; parece feito de palha, incendeia-se com facilidade, produz muita fumaça, mas em cinco minutos é tudo cinza que o mais leve sopro espalha e desvanece." Manuel Antônio de Almeida

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