
Levantou tropeçando nos resquícios da preguiça que ainda lhe envenenavam. Deu um tapa rude no rosto curtido pelo sol. Resmungou algo que não entendi muito bem, algo que calhava como "Pobre não tem preguiça, nem fome, nem sono". Lavou as mãos numa bacia de ferro, descascada, reduzida à tralha por algum rico que a descartou, elevada a pia por ele, que a achou. Passou as mãos grossas em sua face, rompendo de vez com a revolta matutina que todos os dias o impedia de pensar "hoje vai ser diferente". Trocou de roupa. Não tomou banho, afinal, água encanada por ali era lenda urbana. Comeu um pedaço de pão velho que descansava sobre a mesinha de madeira de seu imóvel cúbico. Engoliu seco. A próxima refeição seria apenas após as duas horas da tarde, se alguma alma generosa compadecida de um pobre coitado lhe cedesse um prato de comida. Pegou a bicicleta, que demorou um ano pra comprar, coisa simples, pneus que juravam ter sido careca a vida toda. Saiu de sua mansão empurrando seu meio eficiente de locomoção. Fechou a mansão. Olhou ao redor, uma náusea fez com que seu estômago fingisse pesar uns dois quilos. O cheiro de lixo era forte por ali.
Montou no veículo de tração nas... duas rodas e pedalou. Pedalou por vinte quilômetros até o centro da cidade. Chegou no trabalho já sob o efeito do pouco açúcar circulando no sangue. Guardou a bicicleta no canteiro de obras. "Bom dia zé". "Bom dia zé". "Bom dia zé". Por ali todos eram zé, condenados à uma vida inteira de anonimato perante o resto da sociedade que diz ser superior, baseada em diplomas, diplomas estes transformados em sonho de consumo almejado pelo padeiro, pelo pedreiro e pela balconista da mercaria da esquina. Pobrezinhos, mais uma vez foram induzidos pelo capitalismo, que até isso transformou em comércio.
Milhões de esperançosos "zés" condenados à miséria da ausência de berço próspero, curso superior, casa de alvenaria... Reduzidos até no nome. Anônimos.
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