Partida


Naquele dia parecia que ela estava cansada demais para fazer qualquer coisa que exigisse o mínimo esforço. Queria ser deixada de lado, quieta no canto dela, sem que ninguém a encomodasse, sem que ninguém soubesse que ela existia.
Ela acompanhada do seu corpo saiu para dar uma volta, sentiu a brisa do verão varrer a pele daquele corpo, que não era nada sem ela, apenas matéria. Continuaram a andar pela calçada de pedras da rua onde morava a matéria e a essência. Para os que vissem de fora era impossível perceber qual delas estava exaurida de tanto lutar, de tanto ser quem realmente é. Após a caminhada chegaram em casa, as duas juntas é claro. O sofá da sala parecia tão atraente, seria ali mesmo que iriam se esparramar. Mas, era o limite dela, da Vida, que deu seu ultimo sopro, deixando a Matéria ali, só, condenada ao nada sem sua compania. Condenada ao silêncio mortal do exausto abandono.

Quem sabe?


Na saga da minha vida
Houve choros e abraços,
No filme da minha história
Extremos amores e descasos,

Nas falas do meu roteiro,
Risadas falsas e devaneio
Na chave da sentença final,
Quem sabe, um belo torneio.

Alguns sorrisos amargurados
Espécie de novela desigual
Surpresas, estranhas trapaças
Quem sabe, nada disso foi real.

Tudo que sei foi que atuei
Entre finais e recomeço
Mas como ator grandes tropeços
Quem sabe, palco vazio almejo.

Se for rima ou discrepância
Desfazendo os nós da inconstância
Decifrando as cirandas dessa vida
Quem sabe, há sempre esperança?

As quatro estações.


Verão de 1920.
O dia estava lindo, eu me lembro muito bem. Os pássaros cantavam alto, as borboletas dançavam conforme o vento as carregava. Estávamos lá, eu e ele,
sentados no banco em frente do jardim de nossa casa recém comprada. Éramos recém casados, e nos amávamos tão intensamente, tão verdadeiramente que fica difícil de descrever. Ele vestia sua farda verde, e em cima de seus cabelos negros e cacheados o chapéu com um distintivo verde e amarelo. Eu gostava de me arrumar quando ele estava em casa. Meu cabelo curto estava impecável, uma blusa de seda com botões de pérola, saia no joelho e sapatos lustrados. Estávamos olhando o pôr do sol, talvez o mais bonito da minha vida, e da dele também. Vi que ele estava
inquieto enquanto mexia no bolso esquerdo, eu fingi que não reparei, fiquei olhando para o fim da rua, absorta em minha felicidade. Senti um toque de leve no pescoço, olhei rapidamente e encontrei seu olhar, escutei sua voz cantada sussurrar no meu
ouvido "Isso é para você, meu amor, pois você é o bem mais precioso que tenho na vida, o sol mais radiante que posso contemplar, a flor mais delicada, a jóia mais perfeita, a luz do meu olhar". Enquanto eu processava aqueles versos de poema tão bem recitados, lágrimas de felicidade varriam meu rosto. Ele tirou da caixinha um colar de rubis, o mais perfeito que eu já vira. Com suas mão delicadas prendeu-o no meu pescoço. Eu o beijei ternamente, enquanto o sol cedia seu lugar para a lua brilhar.

Primavera de 1930.
Era o dia do nascimento do nosso primeiro filho, eu queria uma menina, e ele um menino. Eu sentia as dores do parto enquanto ele segurava firme minha mão, eu sabia que podia contar com meu marido, eu me sentia segura com ele ao meu lado, enquanto eu estava sentada na poltrona, segurando minha enorme barriga, gotas de suor pingavam, eu sabia que ele estava preocupado e extremamente empolgado com o nascimento. Passei a mão no meu pescoço, senti o colar de rubis na ponta dos dedos, me lembrei do quanto o amava, de como ele era perfeito para mim. Olhei fundo nos olhos dele e disse "Eu te amo, para sempre". Ele retribuiu meu olhar, me beijando na testa. Horas depois, do lado de fora da sala ele pode escutar o choro forte do nosso filho, eu não
me continha de tanta felicidade, alguns instantes depois mais um choro forte, era uma menina,
tão linda quanto o primeiro. Como fui eu abençoada, minha vida estava perfeita. Depois fui para o quarto, e segurei meus dois filhos, um de cada lado. Ele olhava para sua família agora completa, e acariciava os recém nascidos delicadamente. Olhei para fora, e vi pela pequena janela a lua cheia brilhar, assim como os meus olhos, maravilhados.

Outono de 1940.
As folhas amareladas caiam das árvores, as crianças já crescidas corriam no jardim,
e, como todos os domingos eu e ele sentados no banco, agora cor de várias estações. Os gritos
animados e as risadas inocentes dos nossos filhos eram tão gostosos de apreciar... Já estava quase escurecendo, quando ele disse baixinho para mim "Você se lembra ? Foi aqui que eu fiz juras de amor para você, e agora com nossos filhos crescendo, meu amor por você é ainda mais singular, só posso te agradecer por você fazer parte da minha vida". Eu o abracei fortemente, ele passou a mão no meu colar, as pedrinhas cor de paixão simbolizavam nosso amor. Ficamos ali por mais algum tempo, as folhas caiam das árvores, as crianças tentavam pegá-las ainda no ar. Eu encostei minha cabeça no ombro dele, segurando firme a sua mão.

Inverno de 1970.
Os nossos filhos haviam crescido e se casado, cada um já tinha sua vida, e eu tinha a minha. Agora eu estava solitária, sentia a dor de sua presença não mais poder sentir, de sua voz não mais poder ouvir, de seu olhar não mais poder apreciar. Estava frio demais lá fora, estava frio demais aqui dentro, estava frio demais dentro do meu coração. Mesmo assim, lá fora parecia tão mais atraente. Eu vesti meu casaco grosso, fui ver o pôr do sol. Sentei-me no nosso banco, tão antigo , o vento me congelava, mas ali eu sentia sua presença. Coloquei minha mão sobre o meu pescoço, senti as pedrinhas brilhantes, senti seu cheiro ali, senti seu calor. Acho que pude escutar você sussurrando aqueles lindos versos no meu ouvido, aqueles que eu sabia de cor: "Isso é para você, meu amor, pois você é o bem mais precioso que tenho na vida, o sol mais radiante que posso contemplar, a flor mais delicada, a jóia mais perfeita, a luz do meu olhar".
Fechei os olhos com a minha mão ainda segurando a jóia, adormeci, enquanto via pela última vez o sol cedendo lugar para a lua brilhar.

Nem preto nem branco


Andava ele na rua, estava chovendo forte, as gotas não deixavam com que
ele visse nitidamente seu reflexo nas poças formadas rente ao meio fio. Naquele dia nem preto nem branco, ele não gostou do seu reflexo, não gostou da sua descrição, não gostou do que viu no espelho trincado. Achou a solução, camuflou-se com mentiras, camuflou-se com um saco de palavras, de virgulas de pontos e finais que nada dele tinham. A principio foi bom, mais depois não havia mais sentido em tudo aquilo, mais o circulo vicioso estava formado, não havia escapatória. Uma farsa entrelaçada na outra fazia com que os tropeços no barbante das mentiras, fizessem constantes. Foi então, que depois de muitos invernos o outono chegou. As folhas das inconstantes caducifólias insistiam em cair. Ele respirou fundo, precisava se livrar de todo aquele personagem obscuro. Rasgou em incontáveis pedaços a mascara que cobria seu rosto, desenrolou o barbante farsante, e resolveu ser quem realmente era. O sol raiou alto no céu, enquanto o vento carregava as folhas que no chão caídas estavam.

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Não há sentido em decifrar o que há dentro de cada um. Cada cenário diz respeito apenas ao ator que o utiliza como meio de brilhar, imaginar, como ferramenta para existir dento de si.

Aline Ribeiro Cunha.

About Me

"O coração da mulher é assim; parece feito de palha, incendeia-se com facilidade, produz muita fumaça, mas em cinco minutos é tudo cinza que o mais leve sopro espalha e desvanece." Manuel Antônio de Almeida

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